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Moda

Tecido vegetal vira moda: a revolução dos materiais que imitam couro e nascem de abacaxi, kombucha e folhas

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O desejo crescente por materiais mais éticos e sustentáveis tem transformado profundamente a moda contemporânea. O que antes parecia utopia — criar um tecido que imita couro sem dependência animal — hoje ganha forma em folhas, frutas, bactérias e até fungos. A indústria global expandiu o olhar para biotecidos que reproduzem textura, resistência e estética do couro, mas com uma história muito mais ecológica e criativa.

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Assim, fibras de abacaxi, látex amazônico, micélio de cogumelos e até películas geradas pela fermentação da kombucha começam a conquistar espaço nas passarelas e redefinem o futuro do setor. Mesmo assim, essa nova geração de materiais enfrenta entraves que vão desde a legislação brasileira à logística internacional e ao custo elevado de produção. É uma tendência inegável, porém ainda distante do guarda-roupa cotidiano.

A lei que define o que é couro — e o que não pode receber esse nome

Embora estes materiais pareçam couro ao toque e ao olhar, no Brasil eles não podem legalmente ser chamados assim. Uma lei federal de 1965 determina que apenas materiais feitos de pele animal curtida podem levar o nome “couro”. É uma regra antiga, mas ainda válida — e que pode resultar em multa para marcas e lojas que tentarem vender “couro ecológico” ou “couro vegano”.

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Foto: Divulgação/Ananas Anam Ldt.

“A gente tem que lembrar que não pode chamar de couro, existe a Lei nº 4.888/65, de 1965, é uma lei muito antiga, que diz que a gente não pode chamar nada que não seja pele de animal curtida de couro. Então é passível de multa”, explica Ana Laura Scalea, especialista em tecidos e pesquisadora de inovação têxtil.

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A classificação legal não impede a inovação, mas abre uma discussão sobre identidade visual, comunicação e até consumo consciente.

Do abacaxi à passarela: quando resíduos agrícolas viram luxo

Entre os novos materiais, um dos mais famosos é o Piñatex, criado a partir das fibras das folhas do abacaxi — partes descartadas pela agricultura tradicional. Embora tenha nascido nas Filipinas, hoje ele é processado na Espanha e se tornou um ícone da moda sustentável depois de aparecer em um desfile da grife Hugo Boss em 2019.

A aparência, a textura e a maleabilidade chamam atenção, mas o impacto ambiental não depende apenas da matéria-prima usada. Ele também é definido pelo caminho que o produto percorre, incluindo transporte internacional e etapas industriais.

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Foto: Divulgação/Ananas Anam Ldt.

“Quando a gente fala de sustentabilidade, a gente também tem que pensar no caminho que esse material percorre. O Piñatex vem das Filipinas, as folhas. Só que ele é processado na Espanha. Então, quando a gente pensa no global que a gente faz esse transporte, a gente acaba perdendo tudo”, afirma Scalea.

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Ou seja: por mais inovador que seja, o material precisa superar o desafio da logística global para realmente reduzir impactos ambientais.

Muito além do abacaxi: novos biotecidos criados a partir de cogumelos, kombucha e folhas brasileiras

Alguns dos tecidos mais promissores nascem de agentes naturais que surpreendem pelo potencial estético e funcional. O mico-couro, feito a partir do micélio dos cogumelos, é um dos mais estudados internacionalmente. Ele produz uma superfície que lembra couro animal, mas com menor impacto ambiental.

A kombucha, por sua vez, gera uma película espessa durante sua fermentação. Essa celulose bacteriana pode ser tratada, tingida e moldada, resultando em um material flexível, biodegradável e visualmente sofisticado. No Brasil, projetos com látex amazônico — especialmente na Ilha do Marajó — preservam modos tradicionais de produção, fortalecem cooperativas locais e reduzem o uso de materiais sintéticos.

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Outro destaque nacional é o uso das folhas da planta conhecida como orelha-de-elefante, empregadas pela marca BeLeaf e também apresentadas na passarela pela Misci, que transformou a botânica brasileira em protagonista fashion. Esses materiais não só ampliam o repertório estético da moda, como também reforçam a importância de soluções que valorizam territórios, biodiversidade e trabalho local.

Por que ainda são caros? A promessa sustentável que não chegou ao varejo

Apesar do potencial e da criatividade, esses biotecidos ainda são restritos a coleções de luxo. A produção em pequena escala, a necessidade de pesquisa constante, o tratamento específico e as etapas de conservação tornam o preço final elevado.

O próprio Piñatex pode chegar ao Brasil custando entre R$ 600 e R$ 700 por metro — valor semelhante ou até superior ao couro animal nobre. Para Scalea, o problema não é apenas o preço: é também a falta de informação e consciência sobre o ciclo de vida dos materiais.

“Esses materiais ainda não são acessíveis”, afirma a pesquisadora, destacando que expansão da produção e maior demanda podem, no futuro, reduzir os custos. Hoje, porém, a alta costura experimenta esses materiais como peças de inovação, enquanto o mercado de massa observa à distância.

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Contra o plástico: por que o PU é o vilão da equação?

Um dos fatores que impulsionam o crescimento desses novos materiais é a crítica crescente ao PU (poliuretano), o famoso “couro fake”. Embora imite a estética do couro animal, o PU é um plástico — e dos menos sustentáveis. Ele dura pouco, descasca, não pode ser reciclado e inevitavelmente termina em aterros ou incineradores.

“É aquele material que descasca depois de um tempo. Ele tem vida curta e não há reciclagem. Então, acaba sempre no lixo. Entre todas as opções, o PU é a pior para o meio ambiente”, afirma Scalea.

Os biotecidos, por outro lado, podem durar bastante dependendo do cuidado e, em muitos casos, já passam por testes semelhantes aos aplicados ao couro tradicional, garantindo resistência, impermeabilidade e longevidade.

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Para além da imitação: a busca por uma identidade própria

A discussão mais profunda, porém, não é sobre imitar couro. Segundo Scalea, a moda precisa abandonar a ideia de que o visual do couro animal é o padrão a ser reproduzido. A inovação verdadeira está em permitir que cada biotecido carregue sua própria estética — suas marcas, texturas, padrões e histórias.

“A gente tem que repensar essa cultura de que a gente ‘tem que ter’ uma coisa de couro. A gente pode pensar em outros tecidos, ou esses materiais ainda não são acessíveis. A população precisa entender o que acontece com esse lixo têxtil para aí se conscientizar e começar a ter uma produção maior e que acessibilize o valor”, defende.

Para ela, o futuro depende não só da tecnologia, mas de uma mudança cultural profunda. A moda que nasce da natureza não quer substituir o couro: ela quer propor um caminho completamente novo.